Porque entendo que no contrato político democrático é fundamental a atenção dos governados face aos compromissos publicamente assumidos pelos governantes, relembro ainda uma outra vez o que consta do programa do governo:
“A política cultural para o período 2005-2009 orientar-se-á por três finalidades essenciais. A primeira é retirar o sector da cultura da asfixia financeira em que três anos de governação à direita o colocaram. A segunda é retomar o impulso político para o desenvolvimento do tecido cultural português. A terceira é conseguir um equilíbrio dinâmico entre a defesa e valorização do património cultural, o apoio à criação artística, a estruturação do território com equipamentos e redes culturais, a aposta na educação artística e na formação dos públicos e a promoção internacional da cultura portuguesa. A opção política fundamental do Governo é qualificar o conjunto do tecido cultural, na diversidade de formas e correntes que fazem a sua riqueza do património à criação, promovendo a sua coesão e as suas sinergias.”
“O compromisso do Governo, em matéria de financiamento público da cultura, é claro: reafirmar o sector como prioridade na afectação dos recursos disponíveis. Neste sentido, a meta de 1% do Orçamento de Estado dedicada à despesa cultural continua a servir-nos de referência de médio prazo.”
Em vez disso, a que assistimos? Desaparecimento político quase total do Ministério da Cultura, nomeadamente face ao das Finanças e também o da Economia, cujo titular se armou na pose de “ministro da ‘cultura de luxe’”; asfixia financeira reforçada; revogação do Estatuto do Mecenato; intervenção autoritária e liquidação de trabalhos sustentados nos Teatros Nacionais Dona Maria e São Carlos e no Museu Nacional de Arte Antiga; confusões burocráticas mastodônticas com a alteração do estatuto de institutos públicos. Pois como se isso tudo já não fosse pouco chegou agora, constata-se, a hora do património. “Defesa e valorização do património cultural”? Homessa!
A notícia do 'Público' de ontem, “Vender um monumento poderá ser mais fácil”, tem de ser lido várias vezes (eu tive) para se perceber bem, de tão literalmente inacreditável que é. De acordo com o novo “regime geral dos bens de domínio público” elaborado pelo ministério das Finanças, este podem não só ser “objecto de uso privativo”, como também está prevista a sua “venda e oneração pelas vias do direito privado”. Alienar, obter possivelmente as receitas extraordinárias a que os ministros das Finanças costumam recorrer, eis o caminho aberto. A arqueóloga Ana Dias, Técnica do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, dá um exemplo que se diria extravagante, mas possível segundo o quadro legal ora proposto: o Mosteiro de Alcobaça podia ser transformado num “hotel de charme”! Ou vendida a Torre de Belém, diz a jurista Maria João Silva!
É “uma inovação de tal forma chocante que estamos certos de vir a constituir um escândalo nacional”, frisa-se num documento da recém-constituída Plataforma pelo Património Cultural. Um escândalo, nem menos, que não pode passar desapercebido, que é uma questão cívica maior – porque implica a memória colectiva e exige uma regulamentação bem definida e prudente. Da parte do governo, nota a Plataforma, há um “silêncio ensurdecedor”, mas um sinal de interesse surgiu: em Janeiro serão recebidos pelo Presidente da República.
Quanto ao ministro da Cultura, que se saiba, permanece na Ajuda, como de costume, a ver lá do alto os navios passarem – ou a barca a naufragar.
(in_letra de forma_blog_Augusto M. Seabra)
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