Perplexos é como antigos responsáveis e estudiosos do património cultural se proclamam face à "mudança drástica" que, segundo eles, derivará do novo regime proposto pelo Governo para os bens que integram a "memória colectiva". Dizem que poderá abrir as portas a uma "alienação do património cultural só comparável ao processo de desamortização, nacionalização e venda dos bens da Coroa e da Igreja, ocorrido na primeira metade do século XIX".
"Os bens classificados, independentemente do grau de protecção, passam a ser vistos como puros recursos económicos. É um absurdo", disse ao PÚBLICO Paulo Pereira, antigo director do Instituto Português do Património Arquitectónico, um organismo entretanto extinto. Até hoje, o Estado tem tido a preocupação da posse e controlo dos bens patrimoniais, seguindo uma política de resgate destes, mas com a nova proposta de lei sobre o "regime geral dos bens do domínio público" o mote é "alienar", frisa José Aguiar, presidente do ICOMOS-Portugal, um organismo consultor da UNESCO.
Mudança radical
Num trabalho sobre a actual proposta do Governo, realizado no âmbito de um mestrado em curso na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Maria João Silva, jurista, sublinha que nesta apenas se "considera do domínio público os bens culturais imóveis que sejam simultaneamente monumentos nacionais e propriedade do Estado", e que se admite não só que estes possam ser "objecto de um uso privativo", como também a sua "venda e oneração pelas vias do direito privado": "Constitui uma mudança radical no regime deste bens, que antes estavam, em absoluto, fora do comércio jurídico privado". O exemplo é "grotesco", admite Maria João, mas mostra a dimensão da coisa: nos termos da actual proposta, até a Torre de Belém poderia ser posta à venda.
Ana Dias, arqueóloga e técnica superior do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, dá outro exemplo para o futuro: com esta proposta, elaborada pelo Ministério das Finanças, "torna-se viável" o projecto de instalação de um hotel de charme no Mosteiro de Alcobaça. Este projecto arrasta-se há anos, uma vez que ao abrigo da lei em vigor dificilmente poderia garantir uma das condições de base: a não realização de obras de alteração irreversíveis. Mas esta condição, acrescenta, não está acautelada na actual proposta de lei.
Associações vão a Belém
Constitui "uma inovação de tal forma chocante que estamos certos vir a constituir um escândalo nacional", frisa-se num documento que a Plataforma pelo Património Cultural, de que fazem parte 21 associações, entregou no âmbito da discussão pública desta proposta, que terminou no final de Novembro. No documento pede-se a "suspensão imediata" deste processo legislativo. Até agora não houve qualquer resposta. José Aguiar fala de um "silêncio ensurdecedor", mas dá conta de um "sinal de interesse": em Janeiro, vão ser recebidos pelo Presidente da República.
Entre as "inovações" figura também um chamado "dever de desafectação" que deve ser exercido quando o bem deixe de desempenhar a função de utilidade pública que justificou" a sua inclusão no domínio público. Não está definido o que se entende por esta função. Este procedimento de desafectação poderá ser iniciado por qualquer pessoa. Ou seja, um particular pode requerê-lo, por exemplo, em relação a um edifício histórico que esteja em mau estado ou que se encontre encerrado. "A primeira utilidade pública destes bens é serem memória a preservar", o que poderá ser comprometido com a desafectação, frisa Ana Dias.
(in_público 16/12/2008)
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